A Lei n° 14.843/24, denominada de Lei das Saidinhas, entrou em vigor, e algumas inovações com ela foram trazidas, dentre as quais destacamos a obrigatoriedade da realização de exame criminológico e o monitoramento através de tornozeleira eletrônica para aqueles que progridem do regime semiaberto para o aberto.
O exame criminológico suscita questionamentos, e parte da doutrina, inclusive, não valida sua eficácia. Porém, o que se indaga é se a obrigatoriedade do mesmo invalida ou sobrepõe o teste de Rorschach.
Do ponto de visto criminológico, o teste de Rorschach contribui para a verificação de possíveis intenções e motivações de um acusado em relação a um crime, além de avaliar a credibilidade de um acusado. Até o advento da promulgação da Lei das Saidinhas, o exame criminológico aplicado era justamente o teste de Rorschach, porém, não de maneira obrigatória e a critério do magistrado.
A técnica foi criada em 1921 pelo psiquiatra e neurologista suíço Hermann Rorschach, que percebeu que reconhecer características nos borrões exigia funções complexas da mente.
O método de Rorschach tem como objetivo a indução do avaliado a revelar seu mundo privado através da análise de dez lâminas ou pranchas, nas quais pode ou não haver projeção de sentimentos dada a variedade das figuras que são compostas por borrões de tinta em formas e textura variáveis, no entanto, com perfeita simetria e uma referência de eixo vertical. Cinco delas são pretas e brancas, duas apresentam também cor vermelha e três são policromadas.
O examinado deve indicar o que a mancha lhe parece, sugere ou o que o faz lembrar em um espaço de tempo não determinado para sua duração. Em geral, o teste completo dura em torno de uma hora.
A avaliação produz índices que propiciam ao analista verificar condições intelectuais, afetivas e emocionais, controle geral de processos racionais e afetivos, adaptação e ajuste social, além de domínio de impulsividade que são importantes na ponderação se o condenado pode ou não progredir de regime dentro do universo prisional.
No Brasil, o teste de Rorschach é validado pelo Conselho Federal de Psicologia e já foi obrigatório na admissão de delegados nos quadros da Polícia Federal. Também é utilizado na iniciativa privada, pois empresas e multinacionais comumente aplicam o teste em funcionários mais graduados hierarquicamente e/ou em líderes com muitos subordinados. Não tem custo baixo e sua aplicação requer profissional capacitado com uma formação complementar, o que dificulta seu uso em larga escala.
No âmbito penal o teste propicia a identificação de estratégias adotadas pelo indivíduo para lidar com a responsabilidade de seus atos, sua estrutura interna em conjunto com as regras e normas sociais e como que as mesmas são percebidas por esse. Assim, um dos elementos que se pode concluir é se houve arrependimento das ações praticadas e, o mais importante, se o condenado poderá voltar a cometer crimes caso seja colocado em liberdade.
As respostas do examinado são interpretadas por um especialista e, justamente nesse diapasão, centram-se as críticas sobre sua eficácia. Afinal, o resultado perpassa por uma análise objetiva e subjetiva, segundo a qual o analista pode, também, de maneira inconsciente ou não, projetar suas próprias experiências dada a quantidade de variáveis disponíveis.
Ademais, os resultados podem erroneamente indicar comportamentos escamoteados que induzem a conclusões sobre desordem mental que podem ser confundidos com esquizofrenia, por exemplo. E, justamente por conta da subjetividade, dois profissionais podem aferir resultados contrapostos. Apesar disso sua utilização no universo carcerário tem sido eficaz em casos específicos dada a restrição imposta pelo custo do mesmo.
Não são raros os casos em que o entrevistado tem sua progressão de pena recusada em virtude do teste de Rorschach em decorrência da dificuldade de demonstrar arrependimento ou reconhecer sua culpa, além de traços específicos de personalidade como egocentrismo, narcisismo dentre outros. Assim, condenados postergam, se recusam ou fizeram o teste de maneira contrariada, dentre alguns casos destacamos Alexandre Nardoni, Suzane Richthofen, Mizael Bispo, Elisa Matsunaga e Gil Rugai.
Essencial para progressão de regime
Agora, com a Lei das Saidinhas e a alteração do artigo 112 da Lei de Execução Penal, há a aplicação do exame criminológico como elemento necessário para a progressão de regime. A medida não é nova, já que o exame foi instituído no Brasil desde 1984 com a criação da Lei n° 7.210/84, a Lei de Execução Penal (LEP) com o escopo de uma adaptação necessária e gradativa do preso para o retorno ao convívio social. Sua obrigatoriedade perdurou até a Lei n° 10.792/03, com a modificação do aludido artigo 112. Isto é, se resgata medida que já existia e era questionada acerca de sua eficácia e por procrastinar a progressão prisional.
O exame tinha essas características, já que era aplicado por uma equipe multidisciplinar presidida pelo diretor do estabelecimento prisional e composta por: médico psiquiatra, psicólogo, assistente social e dois membros da própria unidade prisional. Como é possível se perceber, o custo para essa estrutura é elevado e carece de quantidade de profissionais disponíveis para tanto. Além disso, é menos eficaz que o método de Rorschach porque sua metodologia, através de questionários, escalas e/ou inventários psicológicos, há a possibilidade de manipulação ou dissimulação consciente e intencional do examinando.
Assim, fica a dúvida se o exame criminológico substitui o teste de Rorschach, se são complementares, se ambos podem ser aplicados e se existem requisitos ou critérios distintos para um ou para outro, como por exemplo a periculosidade do preso.
Com o retorno da obrigatoriedade do exame criminológico indagações surgiram diante da falta de previsão no tocante ao procedimento, dentre as quais destacamos: A estrutura de outrora voltará a ser aplicada? Qual o impacto econômico para os estados diante da obrigatoriedade? Os resultados podem conter subjetividade ou serem inconclusivos? O Exame é mais eficaz que o teste de Rorschach? É possível a aplicação conjunta? A Lei da saidinha prevê a obrigatoriedade, porém, não estipula o procedimento, portanto, fica a critério de cada unidade prisional? Os estados estão aparelhados para sua implementação em larga escala? O exame é inconstitucional? Essas e tantas outras questões não são esclarecidas na Lei n° 14.843/24, destarte que traremos alguns caminhos e elucidações.
O primeiro ponto versa acerca da obrigatoriedade prevista em lei, haja visto que as súmulas 26 do STF e 439 do STJ possibilitam o seu emprego a critério do magistrado. Para o Supremo Tribunal Federal, o exame tem por finalidade o suporte para avaliação da progressão de regime. Já para o Superior Tribunal de Justiça, o mesmo é utilizado de acordo com a peculiaridade de cada caso. Assim, há a possibilidade de não ser o exame requisito essencial para a progressão de regime.
Sobre como aplicar, no silêncio da lei, se pressupõe o resgate do modelo anterior, no qual há a previsão de realização por uma equipe multidisciplinar. E, nesse ponto, se questiona a possibilidade de subjetividade ou, até mesmo, indução consciente ou não do entrevistado.
Custo operacional do exame
Ademais temos a dificuldade essencial corrente: o custo operacional do mesmo. Para sua implementação, em larga escala diante da realidade do universo prisional brasileiro, os estados não dispõem de recurso para contratar a quantidade de profissionais necessários. O resultado serão filas de espera para a disponibilidade da equipe aplicar o exame e, assim, prejudicar direito garantido em lei para o preso ante a procrastinação da progressão de regime.
A volta do exame criminológico é uma medida penal populista com finalidade clara de endurecimento penal. Porém, diante das dificuldades e do custo, os magistrados têm aplicado a progressão da pena sem a realização do mesmo, o que produz resultado diametralmente oposto ao pretendido pelo Congresso Nacional.
O exame é caro, e o Estado não possui recursos para provê-lo. Em São Paulo, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP/SP) conta com 230 agentes técnicos de assistência à saúde nas unidades prisionais para uma população carcerária próxima de 200 mil pessoas. Somente em 2022, 46,8 mil progrediram de regime.
O custo médio do exame criminológico é de R$ 649, segundo a própria SAP/SP, sem contar os gastos com materiais. Em uma conta simples o impacto econômico aos cofres do governo de São Paulo seria superior a R$30 milhões de reais, somente no ano mencionado, o que, claramente, inviabiliza a aplicação uniforme para todos os pedidos de progressão de regime dada as restrições orçamentárias.
Claro está que a obrigatoriedade do exame produz um instrumento protelatório a fim de manter o preso no regime fechado por mais tempo, dada a necessidade de espera do Estado para prover os instrumentos necessários para a aplicação do mesmo. Assim, mais adequado seria manter o modelo anterior no qual se utilizava o teste de Rorschach diante da necessidade e em casos específicos, a critério do magistrado, além da verificação dos critérios de bom comportamento e do cumprimento de pena.
Uma vez mais o Congresso caminha na direção de medidas populares que não observam os ditames da dignidade humana, da ressocialização e que sequer avaliam o impacto da medida para os cofres públicos. O Estado democrático de direito padece, gasta mal e continuamente em uma população prisional que se avoluma e se vê obstaculizada em progredir, como prevê a lei. Endurecer por endurecer torna a medida inócua, fragiliza o Estado, desrespeita o preso e minora a aprovação popular, assim, o exame criminológico tende a ser parte do que popularmente se consagrou como mais uma das “leis que não pegaram”.