O assentamento Dorothy Stang, em Sobradinho, considerado pela juíza Iracema Botelho como um “palco de verdadeiras guerras pelo domínio da ocupação e do crime organizado, com tráfico de drogas e armas”, acumula uma longa trajetória de violência.
O local, que ainda está em processo de regularização, teve início com uma invasão. Nesse contexto, um grupo passou a “tocar o terror”, cobrando R$ 30 dos moradores para garantir a segurança.
Para compreender a situação do assentamento após a justificativa da magistrada, o Portal consultou processos que explicam a definição utilizada na sentença para condenar um integrante do Primeiro Comando da Capital (PCC) que atuava na região.
Em apenas quatro meses de 2020, conflitos entre grupos rivais resultaram em 12 vítimas, sendo quatro homicídios e oito tentativas de assassinato. Segundo as investigações, os confrontos têm motivação territorial.
Teve-nos acesso a inquéritos sobre esses crimes, ocorridos em 2020. “Cada quadrilha se organiza sob um nome ou sigla — como ‘CNC’, ‘DNOCS’, ‘QUADRA 15’, ‘Tudo 2’, ‘Tudo 3’ — geralmente em referência ao bairro onde residem seus integrantes”, aponta a apuração.
“Além disso, cada grupo mantém seu território bem delimitado, onde não são aceitas pessoas de outros bairros, consideradas rivais”, completa o texto.
As violências citadas anteriormente resultaram de brigas com caráter geográfico. De acordo com a investigação, a rivalidade entre o Comando Nova Colina (CNC) e a Galera do Gilmar teve início quando integrantes do CNC foram presos, obrigando a gangue a expandir sua área de atuação, saindo da Nova Colina para a “parte de cima” do assentamento Dorothy.
A área de invasão já era controlada pelo grupo Galera do Gilmar, que ocupava a “parte de baixo” e se dedicava a atividades criminosas como tráfico de drogas, comércio ilegal de armas, extorsões — inclusive no estilo de milícia, com cobrança por “segurança” —, grilagem e até homicídios.
A chegada do CNC ao Dorothy transformou o assentamento em um verdadeiro palco de guerra”, apontou a investigação da 13ª Delegacia de Polícia de Sobradinho, em 2020.
Um caso emblemático para a Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) envolve uma moradora da comunidade que teria comprado seu lote em 2017 por R$ 268 e, desde então, pagava mensalmente R$ 30 à Galera do Gilmar para que o grupo garantisse a segurança de sua moradia.
Em março de 2020, entretanto, o Comando Nova Colina (CNC) invadiu o lote, levou as telhas e a caixa d’água e se recusou a deixar o local, alegando que o ponto se tornaria uma boca de fumo. Na mesma semana, integrantes do CNC assassinaram um dos membros da Galera do Gilmar, iniciando um ciclo de violência que resultou em prisões e mortes, impactando diretamente a liderança e a estrutura de ambos os grupos.
“Atirar para matar”
Em conversas interceptadas pela polícia, Gilmar, líder do grupo conhecido como “Galera do Gilmar”, ordenou um massacre nas ruas localizadas acima de seu território. “Tem que atirar para matar. Não pode ser só para assustar”, disse ao comparsa.
Em outro trecho da mesma conversa, um dos integrantes responde: “Tá ligado que eu sou bandido, não sou comédia. Esses caras estão andando aqui dentro todo dia.” Gilmar reforçou a determinação: “Tem que atirar para matar. E vai ser acima de 20 tiros, para deixar nossa marca, tá ligado?”
Em 2020, os dois grupos sofreram perdas, com mortes e prisões de líderes, que se reinventaram ao longo dos anos. Na decisão de 30 de setembro, a juíza destacou essas mudanças e citou a tentativa de domínio da área pelo crime organizado e pelo tráfico.
“Os personagens mudam; vez ou outra, outros aparecem, e as relações entre os criminosos sofrem alterações. O que se observa, agora, mais frequentemente, é a interligação entre criminosos nascidos no Distrito Federal, Goiás, São Paulo, Piauí, entre outros”, apontou a sentença.
Segundo o texto, “o Distrito Federal vem passando por significativa mudança nos padrões de criminalidade. São pontos de preocupação: o aumento das organizações criminosas; os arranjos entre facções, inclusive rivais, com o objetivo de fortalecimento e maior poder de fogo contra o Estado; as invasões de áreas, muitas vezes justificadas sob a falsa premissa de destinação social; o crescimento da interface entre advogados, servidores públicos e grupos criminosos; e o dinamismo do crime em contraste com a burocracia estatal”.
O texto faz parte da sentença da juíza Iracema Botelho, que condenou o integrante do PCC Romário Gil de Sousa Nascimento a 16 anos e 4 meses de prisão pela tentativa de homicídio contra um desafeto em Sobradinho.
O faccionado já cumpria pena de 94 anos, mas, com a nova condenação, a pena total passa a 110 anos. Ele seguirá detido na Penitenciária Estadual de Formosa (GO).
O assentamento Dorothy Stang, em homenagem à missionária católica norte-americana da Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foi criado em referência à militância de Stang contra a exploração ilegal da floresta. Ela foi assassinada em 2005, em Anapu (PA).
O portal questionou o MPDFT e o GDF sobre a situação urbanística do local. O MPDFT informou que há um procedimento em andamento na Prourb para avaliar a regularidade do assentamento e que casos de violência são tratados pela promotoria local. Até a última atualização, o GDF ainda não havia se manifestado.

